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8 de fevereiro de 2013

Viagem à sombra


Tua casa sozinha – lassidão dos devaneios, dos segredos. Frocos verdes de
perfume sobre a malva penumbra (e a tua carne em pianíssimo, grande gata
branca de fala moribunda) e o fumo branco da cidade inatingível, e o fumo
branco, e a tua boca áspera, onde há dentes de inocência ainda.
És, de qualquer modo, a Mulher. Há teu ventre que se cobre, invisível, de
odor marítimo dos brigues selvagens que eu não tive; há teus olhos mansos de
louca, ó louca! e há tua face obscura, dolorosa, talhada na pedra que quis falar.
Nos teus seios de juventude, o ruído misterioso dos duendes ordenhando o leite
pálido da tristeza do desejo.
E na espera da música, o vaivém infantil dos gestos de magia. Sim, é dança!
– o colo que aflora oferecido é a melodiosa recusa das mãos, a anca que irrompe
à carícia é o ungido pudor dos olhos, há um sorriso de infinita graça, também,
frio sobre os lábios que se consomem. Ah! onde o mar e as trágicas aves da
tempestade, para ser transportado, a face pousada sobre o abismo?
Que se abram as portas, que se abram as janelas e se afastem as coisas aos
ventos. Se alguém me pôs nas mãos este chicote de aço, eu te castigarei, fêmea! –
Vem, pousa-te aqui! Adormece tuas íris de ágata, dança! – teu corpo barroco em
bolero e rumba. – Mais! – dança! dança! – canta, rouxinol! (Oh, tuas coxas são
pântanos de cal viva, misteriosa como a carne dos batráquios...)
Tu que só és o balbucio, o voto, a súplica - oh mulher, anjo, cadáver da
minha angústia! – sê minha! minha! minha! no ermo deste momento, no
momento desta sombra, na sombra desta agonia – minha – minha – minha – oh
mulher, garça mansa, resto orvalhado de nuvem...
Pudesse passar o tempo e tu restares horizontalmente, fraco animal, as
pernas atiradas à dor da monstruosa gestação! Eu te fecundaria com um simples
pensamento de amor, ai de mim!
Mas ficarás com o teu destino.
Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 1938

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